Aos
dez anos de idade, João Victor passou pela situação mais constrangedora e
difícil já vivida por ele até hoje. Tudo começou quando as farras homéricas do
seu pai, um caminhoneiro boêmio que gastava o que tinha (e até o que não tinha)
em festas animadas por muita bebida e mulheres, levaram-no a falência. Em sua
última tentativa desesperada de reaver os bens que perdera, o homem apostou e
perdeu, em uma partida de Pôquer, a única propriedade que lhe restara: a casa
onde vivia com a esposa e o único filho. O vencedor do jogo era um jovem
empresário recém chegado à cidade, cuja intenção era implantar um comércio, uma
espécie de mercantil, pelas redondezas e lá mesmo fixar moradia, no entanto faltava-lhe
um terreno. Com a conquista do prêmio na mesa de jogo, seus planos agora
poderiam ser concretizados.
Chegado
o dia de entregar a casa ao novo proprietário, João Victor, no auge da sua
meninice e sem compreender o porquê de ter que deixar seu lar, chorava e
perguntava a sua mãe o que aquelas “catrepilhas”, nome pelo qual o avô dele
chamava os tratores numa alusão errônea à marca da empresa fabricante, faziam
do lado de fora, como se estivessem prestes a entrar em ação. A pobre mulher,
também aos prantos, sem saber o que responder ao garoto, limitava-se, apenas, a
repetir: “a vida não é justa, meu filho”. Mal a criança e seus pais deixaram o
interior da casa, os homens nos tratores trataram de pôr abaixo toda estrutura
sólida que encontraram pela frente.
O
peso de se ver na miséria total e sem perspectiva alguma de encontrar uma solução
para o problema fez com que o pai de João Victor mergulhasse ainda mais na
bebida alcoólica. Não bastasse o vício e a “humilhação”, ao seu modo de ver, de
morar com a sogra, o homem fora assolado por uma depressão que lhe tirara toda
vitalidade para trabalhar e acarretou outros problemas de saude que em pouco
mais de um ano levara-lhe, também, a vida. Quanto à mãe dele, o fato de perder
o marido ainda tão jovem foi demais para sua sanidade mental e a mulher teve
que ser internada em um hospital psiquiátrico, já que estava apresentando comportamento
agressivo e lapso de memória, numa busca exarcebada por fugir da realidade que
se configurava. Ao garoto, que aos poucos se tornava um rapaz, restaram apenas
os avós que tentavam suprir a ausência dos pais no cotidiano de João Victor,
proporcionando-lhe desde carinho até educação na melhor escola da região, na
esperança de que os estudos pudessem ocupar sua mente e fazê-lo esquecer da
sequência de fatos que causaram uma reviravolta em sua vida.
Após
doze anos de todo o ocorrido, João Victor, homem feito e engenheiro civil
formado, conseguira o seu primeiro emprego formal como supervisor da obra de um
metrô. No entanto, os trilhos do trem
seriam construídos numa área ocupada por moradores de rua que ali se fixaram há
algum tempo e resistiam bravamente à destruição de suas modestas instalações,
exigindo a presença do responsável pela construção para apelar por compreensão
e clemência diante da situação.
Ciente da sua convocação, João Victor
compareceu ao local da obra e ouviu, comovido, os argumentos dos moradores que
viviam em condições subumanas. Lembrou-se de sua infância nada nostálgica e por
alguns momentos se viu, como outrora, impotente diante da situação, mas a obra
tinha que ser feita. Uma lágrima discreta escorreu no seu rosto; avistou os
homens a postos nos tratores, aguardando apenas o seu sinal para entrar em
ação, hesitou por um instante mais, até que ordenou: “Liguem as catrepilhas e
façam o serviço o mais rápido possível! Só me chamem quando tudo estiver
concluído”, virou as costas e saiu dali imediatamente.
A
poeira que tomou o ar naquela ocasião encobria os escombros que restaram, assim
como o pesar com o qual João Victor ordenara a atuação dos tratores. Ela não
era capaz, no entanto, de amenizar a dor dos moradores de rua, que agora teriam
que achar outra área pra se instalar e muito menos de apagar as memórias de
João Victor, antes refém e hoje responsável direto, ainda que contra sua
vontade, da infelicidade alheia mais uma vez protagonizada pelas “catrepilhas”.
Na sua mente, apenas uma frase fazia sentido naquele momento: “a vida não é
justa, meu filho”.
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