terça-feira, 5 de junho de 2012

Paradoxo das "catrepilhas"




 Aos dez anos de idade, João Victor passou pela situação mais constrangedora e difícil já vivida por ele até hoje. Tudo começou quando as farras homéricas do seu pai, um caminhoneiro boêmio que gastava o que tinha (e até o que não tinha) em festas animadas por muita bebida e mulheres, levaram-no a falência. Em sua última tentativa desesperada de reaver os bens que perdera, o homem apostou e perdeu, em uma partida de Pôquer, a única propriedade que lhe restara: a casa onde vivia com a esposa e o único filho. O vencedor do jogo era um jovem empresário recém chegado à cidade, cuja intenção era implantar um comércio, uma espécie de mercantil, pelas redondezas e lá mesmo fixar moradia, no entanto faltava-lhe um terreno. Com a conquista do prêmio na mesa de jogo, seus planos agora poderiam ser concretizados.
Chegado o dia de entregar a casa ao novo proprietário, João Victor, no auge da sua meninice e sem compreender o porquê de ter que deixar seu lar, chorava e perguntava a sua mãe o que aquelas “catrepilhas”, nome pelo qual o avô dele chamava os tratores numa alusão errônea à marca da empresa fabricante, faziam do lado de fora, como se estivessem prestes a entrar em ação. A pobre mulher, também aos prantos, sem saber o que responder ao garoto, limitava-se, apenas, a repetir: “a vida não é justa, meu filho”. Mal a criança e seus pais deixaram o interior da casa, os homens nos tratores trataram de pôr abaixo toda estrutura sólida que encontraram pela frente.
O peso de se ver na miséria total e sem perspectiva alguma de encontrar uma solução para o problema fez com que o pai de João Victor mergulhasse ainda mais na bebida alcoólica. Não bastasse o vício e a “humilhação”, ao seu modo de ver, de morar com a sogra, o homem fora assolado por uma depressão que lhe tirara toda vitalidade para trabalhar e acarretou outros problemas de saude que em pouco mais de um ano levara-lhe, também, a vida. Quanto à mãe dele, o fato de perder o marido ainda tão jovem foi demais para sua sanidade mental e a mulher teve que ser internada em um hospital psiquiátrico, já que estava apresentando comportamento agressivo e lapso de memória, numa busca exarcebada por fugir da realidade que se configurava. Ao garoto, que aos poucos se tornava um rapaz, restaram apenas os avós que tentavam suprir a ausência dos pais no cotidiano de João Victor, proporcionando-lhe desde carinho até educação na melhor escola da região, na esperança de que os estudos pudessem ocupar sua mente e fazê-lo esquecer da sequência de fatos que causaram uma reviravolta em sua vida.
Após doze anos de todo o ocorrido, João Victor, homem feito e engenheiro civil formado, conseguira o seu primeiro emprego formal como supervisor da obra de um metrô.  No entanto, os trilhos do trem seriam construídos numa área ocupada por moradores de rua que ali se fixaram há algum tempo e resistiam bravamente à destruição de suas modestas instalações, exigindo a presença do responsável pela construção para apelar por compreensão e clemência diante da situação.
 Ciente da sua convocação, João Victor compareceu ao local da obra e ouviu, comovido, os argumentos dos moradores que viviam em condições subumanas. Lembrou-se de sua infância nada nostálgica e por alguns momentos se viu, como outrora, impotente diante da situação, mas a obra tinha que ser feita. Uma lágrima discreta escorreu no seu rosto; avistou os homens a postos nos tratores, aguardando apenas o seu sinal para entrar em ação, hesitou por um instante mais, até que ordenou: “Liguem as catrepilhas e façam o serviço o mais rápido possível! Só me chamem quando tudo estiver concluído”, virou as costas e saiu dali imediatamente.
A poeira que tomou o ar naquela ocasião encobria os escombros que restaram, assim como o pesar com o qual João Victor ordenara a atuação dos tratores. Ela não era capaz, no entanto, de amenizar a dor dos moradores de rua, que agora teriam que achar outra área pra se instalar e muito menos de apagar as memórias de João Victor, antes refém e hoje responsável direto, ainda que contra sua vontade, da infelicidade alheia mais uma vez protagonizada pelas “catrepilhas”. Na sua mente, apenas uma frase fazia sentido naquele momento: “a vida não é justa, meu filho”.

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